Wisława Szymborska e Outras Coisas Impronunciáveis

Wisława Szymborska e Outras Coisas Impronunciáveis

Lembro de uma frase apócrifa de William Burroughs que diz: nunca comece um texto citando William Burroughs.

Por trás de toda metalinguagem há uma crise. Todo sistema, todo discurso, expressa a si mesmo e sobre si mesmo, então, por extensão de sentido, todo discurso, todo sistema  é metalinguístico. A linguística chama de metalinguagem a auto referência explícita no conteúdo da mensagem à própria mensagem em si. É como um espelho de frente pra outro. Um paroxismo do discurso.

Ok. Chega.

Dia desses fui à livraria do CCBB aproveitar uma folga e procurar por Harold Bloom:

— Agora soletra, por favor.

— Harold. Haroldo com H e sem O. Bloom é Bê éLe Ó duas vezes e êMe.

Tec tec tec. A atendente buscava no sistema quando o sujeito gordo apareceu:

— Não vai atrás disso, não vale à pena…

— O quê? — olhei nos olhos atrás dos óculos de armação preta, em suor e fones de ouvido.

— Tá bom, tudo bem, até mais, tchau!

Um inferno esses celulares hoje em dia. Você acha que estão puxando assunto mas estão conversando remotamente. Parecem uns loucos falando sozinhos. Leva três segundos até perceber que é um celular; três segundos até você se sentir um idiota falando sozinho com alguém que parecia estar falando contigo, mas que está falando sozinho, quer dizer, com alguém, mas remotamente.

— Não tem. Harold Bloom nada. Aqui é mais livro de arte, tenta na outra loja.

— Quem? — O gordo falando comigo sem me olhar.

— Harold Bloom. Crítica Literária.

Muxoxo. Devia ter o dobro da minha idade e me fez um muxoxo. Foda-se, pensei. Daí pôs um livro no balcão com uma nota de 20.

— O que houve com Clarice? 20 reais por Clarice é um crime!

Clarice Lispector é daquelas autoras que são mais citadas do que lidas. Ela e Caio Fernando Abreu. Clarice diz que quando a linguagem falha, o indizível está sendo dito. Caio li, mas não lembro nada. Clarice não li ainda. Qual o problema de Clarice por 20 reais? Ó o gordo querendo gastar dinheiro.

Vou a uma estante atrás da vitrine. Livros de colegas. Nos agradecimentos de um deles meu nome, lá na última página, pequenininho, em ordem alfabética, no meio de um monte de outros nomes. Mas é meu nome de batismo, não o que eu escolhi pra sair nos jornais e ilustrar a capa dos meus livros. Não faz mal, um tijolinho no céu.

Outra prateleira, o gordo ao balcão fazendo trocadilhos pra irritar a balconista.

— Essa aqui é qual Travessa?

— O quê?

— é Livraria da Travessa, Travessa de salada ou rua que a gente atravessa?

Saio, vou à lanchonete, tomo um café com um fuquaçã ou qualquer nome que deram pra joelho de queijo minas. Quando volto o gordo ainda está lá, distraído na seção de CDs e DVDs. O segurança e a balconista conversam, sorridentes, me convidam a entrar na conversa:

— Quando teve aquela exposição do Miles Davis aqui, que botaram aquele totem dele lá fora, toda hora vinha gente perguntar se ia ter show. O cara morreu há vinte anos! Não é possível!

Pequenas explosões, a balconista, o segurança e eu. Um momento de paz, até que o gordo:

— Que você disse?

O segurança repete:

— A exposição do Miles Davis, puseram aquele totem aqui…

— Mas… o tó, tem?

Desconfigura a alegria o rei dos trocadilhos. A balconista desaparece, o segurança olha com indisfarçável desgosto e ejeta para um cafezinho, vou à estante central: uma senhora com rosto mais ou menos oculto atrás da fumaça de um cigarro:

Wisława Szymborska

A polaca Nobel de literatura, morta na mesma semana. Um livrinho fino e bilíngue. Jamais poderia tê-lo comprado. É como se tivesse pagando o dobro do que realmente valia, já que não sei ler polonês. Na orelha dizem que é a grande poetisa de seu país, muito boa em trocadilhos.

Tem um magnetismo que me obriga. E um cadeira acolchoada pra sentar e ler. De uma vez o livro todo, menos, é claro, a metade em polonês, que não sei ler, mas passo a vista naqueles nomes impronunciáveis do tipo tłuszc, bezpieczeństwo, urzędnik, chwila spokoju, ciekawy czytelnik…

Volto à prateleira flutuando a 20 cm do chão. Os poemas! Só o gordo arrimado ao balcão enfia a cara pra ver que livro eu estava lendo.

— Essa aí eu não gostei. Conheci. Muito sebosa.

Seboso.  Vomita um impropério e quer beber água de coco.

Ponho o livro de volta, o gordo reclama de problemas de memória, eu provoco:

— Muita maconha.

Ele nem me olha.

— Não, nunca fumei isso.

— Sinto muito.

— Estou envolvido em práticas espirituais.

— Que tipo de práticas?

— Práticas.

— Tem gente que usa isso nas práticas.

— Veja você, não fumo nem bebo, sou um cara totalmente…

A exposição de mil virtudes escandalosas. Dá-lhe gordo, chato pra caralho!

Penso em ir embora, ele vai saindo também, recuo: já pensou se vai pro mesmo lado que eu? Recuo.

Sumido o gordão, vamos ao papo, o segurança e eu, a balconista apenas sorri.

Comentamos os trocadilhos, o segurança repudia com gravidade, depois sereno:

— Pelo amor de Deus! Vamos ser francos… e quando ele falou aquela do totem? Jesus! O tó tem! E aquela da Travessa? Nossa Senhora! O cara misturou travessa livraria com travessa de salada e travessa de quê mesmo? Que que é isso!

O segurança vai preenchendo o vácuo com outras palavras, enquanto sobe num banco pra ajeitar uma lâmpada.

— É cada um que aparece aqui rapaz, mas você tem que engolir, respirar…

Toca um despertador, o homem avança em minha direção, me toma pelo ombro e conduz para fora:

— Vamos fechar.

Assim, bruscamente. A tensão se desfaz, despede-se afetuoso, a balconista também, baixa a porta, pronto, é noite do lado de fora.

Wisława Szymborska. Não esquecerei daqueles poemas cheios de trocadilhos que eu não li porque não sabia polonês. Já o gordo, esse foi pra lugar nenhum morder suas próprias palavras e reclamar do gosto, inventar motivos pra reclamar da vida — ou do quanto são baratos os livros — falar sozinho no meio da rua como um louco, ao celular.

Um inferno só dele.

 

 

 

wislawa