De sonhos

Este texto foi escrito como introdução ao tema dos sonhos para um sarau de ideias com amigos. 

De sonhos

Desde criança meus sonhos me intrigam. O primeiro de que me lembro é estar num lugar escuro, sem temperatura, onde há um palanque em cujo centro há a estátua branca de um homem bonito, forte e altivo, com um ramo de louros atrás das orelhas e um figurativo S no peito. Um corte brusco e de repente a estátua está viva, desceu do palanque, e agora gira violentamente comigo nos braços, prestes a me arremessar naquele escuro, para o alto. Aos seus pés, uma cadela de minha avó que ainda existia na época, latindo furiosamente. A cadela também é branca. Talvez a pior sensação que já tenha sentido alguma vez, pelo menos em sonho. Quando se tornava insuportável, eu acordava. Um sonho recorrente que, tenho certeza, influenciou — determinou — meu total desinteresse por parques de diversão.

Outros sonhos se seguiram. Num deles, a imagem do Cristo sangrava esperma. Esse sonho também era recorrente, e data da época da descoberta da masturbação; era acompanhado de uma culpa inominável.

Mais adiante, com a separação de meus pais, a ida para a casa de minha avó, cheguei a sonhar que minha mãe se estava de pernas abertas de pernas abertas aguardando minha penetração, ao que meu pai, triste, tocando meu pênis, o desviava da entrada.

Em seguida sonhei que a cabeça de meu pai me perseguia, flutuando, muito triste — chorava — numa paisagem mítica em ruínas, cemitério ancestral, coberto por um céu esplêndido de estrelas.

Minha primeira experiência sexual na adolescência foi interrompida bruscamente por meu pai, e aquele drama da impossibilidade da penetração continuou revolvendo minhas experiências oníricas. Em sonho, estava envolvido em alguma situação de flerte, conseguia levar a menina para o lugar onde faríamos sexo mas de pronto aparecia alguém e tínhamos de nos esconder ou dissimular o que estávamos fazendo; nunca realizava a penetração de fato.

Creio que estes sonhos cessaram quando completei dezenove anos. As circunstâncias me obrigaram a voltar a morar na cidade onde passara a infância presenciando brigas, traições, onde tinha sofrido todo tipo de violência. Tornei a morar na casa onde havia crescido com meus pais e minha irmã, mas ela agora não tinha móveis, só uma escrivaninha e um colchonete. Eu estava sozinho e usava uma caixa de papelão pra guardar minhas roupas.

Dos dezenove, não me lembro de nenhum sonho. Foi um período tão deprimido que possivelmente eles não atingiam a substancialidade necessária para se expressar. Datam dessa época meus primeiros escritos de ficção, quando me enfiei nos livros e passei um ano ou mais apenas acordando pra ler, fazer uma refeição de vez em quando e escrever. Sempre muito.

Depois que passei por esse período sombrio os sonhos foram se restabelecendo, expressando significados cada vez menos usuais.

Interessei-me pelos escritos de Jung, devorei mais de uma dezena de livros do médico sobre o assunto e descobri que há uma raiz que nos alimenta de expressões quando sonhamos: o Inconsciente.

Passei a observar mais ainda meus sonhos e de outras pessoas, agora buscando a uma via de interpretação simbólica, o que me deu muito trabalho, porque primeiro, o símbolo, como unidade expressiva, se confunde com o objeto a que pretende simbolizar. Confusões de toda ordem motivadas por equivocadas interpretações ao pé da letra me tiraram do eixo do aceitável e me levaram muitas vezes ao erro.

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A natureza arquetípica fundamental é incognoscível, e necessita de vias de expressão mais próximas dos sentidos humanos. A partir do momento que um drama se consubstancia, ele atinge a via onírica, e sonhamos. Para se expressar, o arquétipo utiliza uma linguagem de símbolos, onde cada elemento está intimamente implicado ao outro.

Podem os sonhos acessar uma raiz fundamental mais abrangente, que abarque os inconscientes pessoais de maneira a formar um todo expressivo comum aos seres? Sim, a resposta de Jung, com o qual compartilho opinião.

Confrontando sonhos e comportamentos verbais de seus pacientes em um hospital psiquiátrico, Jung encontrou conexões entre aqueles delírios e a constituição do que seriam os sonhos da civilização, a saber, os mitos, narrativas  extraordinárias que remontaram ao período inicial da humanidade, numa tentativa de explicar, simbolicamente, quais foram os termos da criação e as questões do homem diante da vida. A essa raiz antiga, atemporal, Jung deu o nome de Inconsciente Coletivo.

O Inconsciente coletivo é, em suma, o lar dos arquétipos, unidades fundamentais de expressão da psique. Aqueles mesmos aspectos que em nossos sonhos representam funções de nossa existência.

Essa foi só uma introdução, podemos começar o debate a partir daqui. Sonhos são feitos de matéria escorregadia, então, lembrando o velho suíço, gostaria de deixar uma dica pelo bom andamento do encontro: Quando uma questão se recusa a ser respondida pelo intelecto, devemos deixar de fazer dela um problema de ordem intelectual.

A via, meus caros, está aberta.

Vamos confabular.